O SONHO DE DESCARTES
Resumo
O que é o sonho senão a consciência liberta, em sua mais plena manifestação? O que seria hoje da ciência sem o "Sonho de Descartes"? O que seria hoje do homem sem o sonho na ciência? Nossas sensações estão indiscutivelmente susceptíveis ao nosso bias, as nossas convicções prévias, mas também representam a nossa mais completa experiência do que imaginamos seja a realidade física, o mundo objetivo. Por esta razão, as leituras do mundo objetivo que emergem da transdução de eventos físicos em correlatos sensoriais, em sensações, complementados por camadas de significação lógica, estética e afetiva, ainda que falíveis por encerrarem-se em nosso pequeno universo de consciência, representam o único canal através do qual podemos ir além do que as qualidades físicas escrutinizáveis de seus objetos nos instruem diretamente. Se o processamento cognitivo multimodal responde pelo aprofundamento do conhecimento humano, como nossos muitos e variados campos de conhecimento atestam, precisamos rever nossas regras de pensamento e fruição cognitiva em ciência. Representando um preâmbulo do eixo de problematização do grupo multidisciplinar Anatomia das Paixões, coordenado pela presente autora, este artigo pretende pinçar à discussão algumas razões pelas quais deveríamos considerar, no processo de criação do conhecimento científico, a experimentação de trânsitos cognitivos complexos, como aqueles de conteúdo simbólico, metafórico, inefável, relegados ao sistema de criação artística. Numa contracorrente do pensamento científico vigente, uma análise objetiva mais alargada e profunda do problema científico poderia beneficiar-se da contemplação de base subjetiva, em níveis de inspiração. No exercício de perscrutar ordens impressas para além dos correlatos algorítmicos ora evidenciáveis pelo olhar que privilegia a lógica discursiva em detrimento das demais vivências cognitivas, propomos uma nova conduta racional, numa razão que se abra ao benefício de vivências não racionais, no sentido estrito da palavra. Ainda que preservados os velhos trilhos do método experimental em ciência, o alargamento das possibilidades de formulação de hipóteses e de metodologias de testagem poderia advir do nosso contato com as cargas simbólicas e de equivalência funcional, sistêmica, que permeiam nossos objetos de interesse científico.